sábado, 30 de julho de 2011

A Morte/Vida de minha Mãe

No ventre de uma mulher grávida estavam dois bebês. O primeiro pergunta ao outro:
 - Você acredita na vida após o nascimento?
- Certamente. Algo tem de haver após o nascimento. Talvez estejamos aqui principalmente porque nós precisamos nos preparar para o que seremos mais tarde. 
- Bobagem, não há vida após o nascimento. Como verdadeiramente seria essa vida? 
- Eu não sei exatamente, mas certamente haverá mais luz do que aqui. Talvez caminhemos com nossos próprios pés e comeremos com a boca. 
- Isso é um absurdo! Caminhar é impossível. E comer com a boca? É totalmente ridículo! O cordão umbilical nos alimenta. Eu digo somente uma coisa: A vida após o nascimento está excluída - o cordão umbilical é muito curto. 
- Na verdade, certamente há algo. Talvez seja apenas um pouco diferente do que estamos habituados a ter aqui. 
- Mas ninguém nunca voltou de lá, depois do nascimento. O parto apenas encerra a vida. E afinal de contas, a vida é nada mais do que a angústia prolongada na escuridão. 
- Bem, eu não sei exatamente como será depois do nascimento, mas com certeza veremos a mamãe e ela cuidará de nós. 
- Mamãe? Você acredita na mamãe? E onde ela supostamente está? 
- Onde? Em tudo à nossa volta! Nela e através dela nós vivemos. Sem ela tudo isso não existiria. 
- Eu não acredito! Eu nunca vi nenhuma mamãe, por isso é claro que não existe nenhuma.
 - Bem, mas às vezes quando estamos em silêncio, você pode ouvi-la cantando, ou sente, como ela afaga nosso mundo. Saiba, eu penso que só então a vida real nos espera e agora apenas estamos nos preparando para ela... (Recebido sem o nome do autor)


Dona Ondina teve uma infância que ela relatava com tristeza. Os fatos mais marcantes foram a morte de seu pai quando ela tinha 6 anos de idade e o bullying que ela teria sofrido durante os anos escolares, embora na época nem se sabia o que era bullying. Foi pobre, cheia de irmãos, sua mãe era severa...
Casou-se com meu pai, depois de muitos anos e várias tentativas de engravidar e várias perdas de bebês, veio minha irmã e 5 anos depois, eu. Meu primo Nicolas ('Nico véio') disse que ela foi ótima mãe, neurótica até (sic). E foi uma mãe neurótica mesmo. Teve muitas falhas. Era egocêntrica, depressiva, tinha fobia social, mania de que todos a observavam e falavam mal dela, inclusive nós, a família. Quando ajudava algum de nós, queria elogios e agradecimentos eternos, daí insatisfeita, vinham cobranças...
Mas era amorosa, boa ouvinte e boa conselheira, preocupava-se conosco e com meu pai. Ela e meu pai sempre se consideraram parentes, ao contrário de muitos casais. Aprendi com minha mãe que marido é parente. (Depois fui obrigada a aprender com meus filhos que ex-marido também é).
Então essas 'coisas de Dona Ondina' geravam sentimentos contraditórios, às vezes ficava com raiva dela. Mas a amava.
Então vieram os netinhos e ela me disse que os amava mais que a mim. E eu acredito e ficava feliz por ela e por eles.
A volta ao lar foi conturbada, às vezes nos dávamos bem, às vezes mal, mas eu sabia que as crianças a faziam muito feliz. Ela contava as gracinhas deles para todos. E eu contava as coisas que ela não presenciava e ela ria até das mais bobinhas, que eu não contaria a outras pessoas, mas sabia que ela acharia graça!
As mágoas, raivas e tristezas, além do fumo, dos maus hábitos alimentares e de sono foram minando a saúde de Dona Ondina. e aos 72 anos internamos ela no hospital em que trabalho. Todos a trataram muito bem. Melhor do que eu esperava. A princípio porque ela era minha mãe, a mãe da enfermeira do nono andar. Depois pelo seu jeito educado, por ser uma velhinha vaidosa e simpática e por suas manias e 'aprontações' que davam um desconto por ser minha mãe e talvez por acharem graça na velhinha que fumava 'escondido' no banheiro e tacava desodorante achando que ninguém notaria o cheiro do cigarro.
Mas uma parada cárdio respiratória durante uma um exame de ressonância magnética não estava no script. E além do susto que deu na família, a deixou com coração e pulmões mais debilitados do que já estavam. O caso dela era cirúrgico, mas, tratada uma infecção, os médicos, ela e a família acharam por bem que ela se restabelecesse em casa e fizesse exames pré operatórios. No fundo nós não achávamos que ela sobreviveria ao cateterismo e à cirurgia. Acho que ela também pensava assim...
Ela voltou pra casa e tinha saudades dos netos que estavam de férias na casa da outra avó. Mas passou três dias contente, mudando hábitos, fazendo planos de se cuidar melhor. No fundo eu achava um pouco tarde pra ela começar a se cuidar. Mas dizem que nunca é tarde, enfim... Tirando a saudade das crianças, acho que ela estava feliz na medida do possível.
Até que meu pai me acordou dizendo que ela estava em broncoespasmo. Fui ao quarto, ela fazia inalação. Então eu dei alenia para ela aspirar e mudei o remédio da inalação. Ainda passando mal ela foi ao banheiro, evacuou e, quando sentou novamente na cama para fazer inalação, em seguida tombou pra frente, enquanto eu, a empregada e meu pai a levantávamos pedi à babá que chamasse o SAMU e a acomodei em meus braços com a inalação. A babá não conseguiu responder a todas as intermináveis perguntas que fazem e me passou o telefone. Quando tentaram me orientar os procedimentos falei que era enfermeira e dei uns gritos, pois minha mãe agonizava em meus braços enquanto ficavam 'de papo' comigo ao telefone. E ela parou de respirar e em poucos segundos não sentia seu pulso. Devido ao desespero de meu pai, a coloquei no chão e comecei massagem cardíaca e respiração boca a boca. Mas pela quantidade de secreção que ela soltava, vi que seus pulmões estavam encharcados e que eu não podia fazer mais nada... Até que chegou a viatura do SAMU com uma técnica de enfermagem com o ambu nas mãos, falando 'Vamos ressuscitar'. Falei: filha, o que você vai fazer eu já estou fazendo há 20 minutos. Agora chega, você não vai conseguir nada e se por ventura conseguisse, ela ficaria sequelada, coisa que ela não quer. Por eu me identificar como enfermeira, ela aceitou. Quem não gostou muito foram os PMs e o delegado ao chegarem no momento em que eu e a empregada recolhíamos do chão o corpo de minha mãe e começávamos a limpá-la, pois ela havia se evacuado. Mas um médico amigo de muitos anos de minha irmã, que também acompanhava o caso de minha mãe veio e atestou o óbito.
Enquanto minha irmã e seu amigo foram correr atrás do funeral e do enterro, meu primo ficou fazendo companhia ao meu pai e a empregada me ajudava a preparar o corpo de minha mãe. Então, ela me deixou a sós enquanto eu maquiava minha mãe e penteava seus cabelos e conversava com ela. Eu não lembro o que lhe dizia...
Então eu tomei banho e me sentei na cama junto ao corpo e fiquei lá fumando, conversando e olhando pela janela, fazia um dia bonito. Minha tia, irmã de minha mãe e outra prima juntaram-se a nós. E lá ficamos até que o carro da funerária chegou. Pedi a ele que chamasse uma equipe que drenasse os líquidos corporais afim de que ela não ficasse eliminando odores durante o velório. E por 700 reais, além de drenar os fluídos, essa equipe desfez a maquiagem que eu havia feito que a deixou com um semblante sereno, parecendo até que sorria e a deixaram feia, com gel nos cabelos, com os lábios apertados, parecendo outra pessoa...
Liguei para meus filhos e disse aos dois mais velhos que sonhei com uma fada que me disse que o corpo da Didi estava cansado e muito danificado e que ela iria levá-la ao País do Verão. Disse que pela manhã a Didi passou mal e que deitou em meus braços e me mandou dizer que eles foram as pessoas que ela mais amou nessa vida, e que mandou um beijo para cada um deles. E que então apareceram dezenas de fadas no quarto e que pegaram a alma da Didi pelas mãos e a levaram deixando apenas o corpo. E que no País do Verão a Didi plantaria flores e tomaria banho de mar. Então a Mel me perguntou se a noite a Didi viraria estrela e respondi que sim. Pedi ao pai das crianças que os trouxesse ao velório e para o enterro da avó deles.
No velório pessoas iam e vinham, amigos e parentes. Vinham, ficavam um pouco e iam. Veio minha ex sogra e o pai de meus filhos com as crianças. O Dudu e a Mel choraram um pouco ao me verem chorando e eu nunca escondi meus sentimentos de meus filhos. Eles ficaram tristes, principalmente o Eduardo, que é o maior e era o queridão da vovó. O Nico não entendeu nada, nem o levantei para que visse o corpo de sua avó no caixão. Não vi necessidade. Depois me arrependi disso.
Então meus filhos foram dormir na casa da minha tia paterna. Ficamos lá, eu queria passar a noite. Sabia que aquilo era apenas o corpo sem vida de minha mãe, mas tinha a sensação de que indo embora deixaria a minha mãe só naquele lugar horrível, escuro e frio! Mas fui com meu pai, com medo de deixá-lo só e ele passar mal. Temos que cuidar dos vivos, eu pensei, mas não dormi a noite toda pensando em minha mãe sozinha...
Ela era católica. Já foi praticante, mas se desiludiu não sei por que. Acho que foi sua depressão que a deixou descrente. Minha irmã fazia questão que um padre ou um pastor fizesse um ritual de despedida. Então para o enterro foram meus padrinhos, três primos, três vizinhos, uma moça que trabalhou anos em casa, um pessoal do hospital, além de mim, minha irmã, uns amigos dela, meu pai e meus filhos. A irmã de minha mãe passou mal e outros parentes não quiseram ver a Tia Ondina ser enterrada. Minha mãe não tinha vida social, vivia quase enclausurada, então era de se esperar que não viria muita gente. Mas quem veio, veio por afeto por ela e pela família. Então pedi ao meu amigo Lori, pastor evangélico que fizesse uma breve despedida cristã e ele gentilmente fez. Então vi a terra cobrindo o caixão de minha mãe e falei com a Deusa em pensamento: "Devolvo à terra o corpo de minha mãe com tristeza e gratidão e espero que A GRANDE MÃE embale a minha mãe por quem eu tive tantos sentimentos contraditórios, mas a quem eu sempre amei".


Deepak Chopra disse que seria mais fácil se pensássemos que não é a alma que deixa o corpo, mas sim o corpo que deixa a alma. Eu compreendo o que ele quer dizer, mas não consigo pensar assim ainda.
Eu sou espiritualista, acredito que a minha mãe foi para uma nova vida, mas a saudade é grande. Meu pai às vezes chora, minha irmã também. Jogamos no lixo as más lembranças e guardamos as boas. Me vêm à lembrança coisas engraçadas que meus filhos falaram durante o velório e no trajeto do enterro e eu queria contar para minha mãe, então a procuro e não a encontro. E a todo o momento me vêm à cabeça a lembrança do momento de agonia de minha mãe, que foi breve, ainda bem, mas foi sofrido.
Não tomei banho ontem e hoje levantei sem vontade de nada, mesmo com a presença de minha irmã aqui e os planos de meu pai de reformar a casa que há anos pede manutenção. Tenho papéis e contas empilhados e espalhados por toda a casa e brinquedos que devem ser doados, mas não quero fazer nada.
Eu sou forte e como minha mãe dizia: "Não há dor que dure para sempre", mas ela mal se foi e já deixou aquela saudade doída por saber que provavelmente o tempo que levaremos para nos encontrar será grande...


DIDI E NICO

4 comentários:

  1. Como você disse: "Jogamos no lixo as más lembranças e guardamos as boas.", é exatamente isso.
    Sei muito bem o que sente, talvez por isso não tenha tido coragem de ir te dar um abraço, acho que vc entende né.
    Respire fundo, jogue os cabelos pra trás, maquiagem, sorriso e vambora!!! (pode chorar de vez em quando, mas só de vez em quando viu)
    Você é Super Grega e tem muito pra fazer e muitos pra amar e cuidar, mas não pode deixar de SE cuidar.

    Beijo grandão

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  2. Eu compreendo, Nakae, eu tb não costumo ir a velórios. Eu participei dos cuidados do marido da Soninha, não tanto quanto os outros colegas, mas tb dei minha contribuição com carinho, e não fui ao velório nem ao enterro, pois não tinha coragem de ver os filhos chorando a perda do pai, pq não podia aceitar a perda dos meus. A Sônia sabe o quanto eu gosto dela e o quanto lamentei pelos filhos dela e por ela. Algumas pessoas sabem lidar melhor com a situação e conseguem ir e dar sua contribuição, seu apoio, aliás, a Sôninha esteve no sepultamento de minha mãe, outras não, então eu compreendo você e sei o quanto vc lamenta por mim e o quanto deseja que eu supere esta dor. Obrigada, meu amigo! Beijos!

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  3. Ás vezes, quando penso em tantos apenas conhecidos que já se foram, tomo consciência de que um dia aqueles que verdadeiramente amo também partirão. Mas então, quando lembro daqueles que amei e que já se foram percebo que é justamente a lembrança deles, sejam boas ou ruins, que os tornam de certa forma imortais para mim. Permito-me sentir saudades, pois esta é a certeza de que eles permanecem vivos em meu coração. Dos poucos momentos em que estive com sua mãe lembro-me bem de sua personalidade forte, da "implicância" que ela tinha com minha barba, mas principalmente do carinho com que ela me recebia em sua casa. Estas são as lembranças que a tornam imortal para mim. Que as suas lembranças também a tornem imortal para você. Cuide-se. Chore, se a saudade apertar, mas jamais se esqueça de viver!
    Um grande abraço.

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  4. Putz, Cesar! Vc não sabe a alegria de ter um comentário seu em meu blog! Dei muitas risadas... É verdade, Dona Ondina implicava com sua barba e seu cabelo comprido! Mas ela implicava com todo mundo! Ela era uma pessoa de convivência difícil... mas protegia até demais os dela: marido, filhos e netos, amava e se preocupava conosco. Era raro ela gostar de alguém 'de fora', no máximo tolerava, mas era o mecanismo de defesa dela. Tenho boas lembranças de você e de sua família também, vez ou outra dou uma espiada pra ver o que vc, a Catia e o filho lindo e travesso de vocês tem aprontado por aí, rsrsrsrs!
    Um grande abraço para você e para a família linda que vc construiu!

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